Folha de Porto Claro

Campos Bastos, Segunda, 27 de Outubro de 2003
Ano VII - Número 200 - Concluído às 00:28 hs
CNPJ: 02.08.12/1410

COMPROMISSO COM A VERDADE - ANTES, AGORA E SEMPRE
Uma publicação da Folha S/A

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O Criador Fala à Folha

Sim, nós conseguimos. Não só encontramos o Criador como conseguimos que ele deixasse seu retiro para conceder esta entrevista. Em sua 200ª edição a Folha de Porto Claro orgulhosamente publica entrevista com Pedro Aguiar, o fundador de Porto Claro.

FOLHA DE PORTO CLARO: Com certeza você já contou esta história inúmeras vezes, mas peço um pouco de paciência para repeti-la mais uma vez. Como surgiu a idéia de criar uma micronação?

PEDRO AGUIAR: Em 1992, eu não sabia o que era uma "micronação". Aliás, só veria esse termo pela primeira vez em 1996, quando encontrei a "The Micronations Page" do Robert Madison, linkado no site da Niquedônia. O termo "micronação" em português, por sinal, foi inovação minha, mal traduzido de micronation, quando na realidade deveria ter usado "micropaís" porque nation em inglês não é o mesmo conceito de "nação" em português. Até então, chamávamos Porto Claro de "país imaginário", "país inventado" e, principalmente, "país fictício". Este último termo certamente designava PC melhor do que todos os demais: ela sempre foi uma obra de ficção minha, uma criação semi-artística, para meu próprio deleite e passatempo ---- uma experiência estética. Era praticamente o único jeito de fazer ficção que eu sabia. Em vez de escrever um livro, uma peça, um roteiro de cinema ou pintar um quadro, eu criei um país.

É fácil entender a criação de Porto Claro se você analisar o contexto na época de sua criação. Primeiro, deve saber que desde criança eu fui interessado por política, muito estimulado pelos meus pais, que me levaram aos comícios das Diretas Já!, às campanhas políticas do PT no Rio e principalmente à campanha do Lula em 1989. Quando derrubaram o Muro de Berlim, no mesmo ano, eu acompanhei pela TV e já tinha bastante noção do significado daquilo ---- razoável, para quem tinha apenas 7 anos de idade. Em 1991, meu pai cobriu o golpe e o contra-golpe na União Soviética e eu, mais uma vez, recebia "por osmose" a discussão política que acompanhava os eventos. Já tinha posições políticas mesmo naquela época ---- linha-dura, anti-ocidental ---- e isso marcaria profundamente minhas convicções ideológicas dali em diante.

O ano de 1992, portanto, era o primeiro ano do mundo após a Guerra Fria, quando os países começaram a se reorganizar e se acomodar de acordo com as novas regras de geopolítica internacional. Separatismo e independência eram palavras na moda, principalmente no Leste Europeu, e isso era motivo de atenção e até piada também no Brasil. Naquele ano, a Rede Globo levou ao ar o programa Estados Anysios de Chico City, do Chico Anysio, que falava de uma cidade minúscula no sertão que se declarava independente do resto do Brasil: um país com apenas uns 30 ou 50 habitantes, que existia pela simples vontade própria, na base da paródia. A cidade do Rio de Janeiro ficou em evidência por conta da ECO'92, quando recebemos dezenas de chefes-de-estados estrangeiros, presidentes, primeiros-ministros, princesas e reis, e até o Dalai Lama. A Olimpíada de Barcelona, no início de setembro, expôs na mídia os novos estados independentes e o desfile das delegações foi cheio de novidades. Eram várias bandeiras desconhecidas que não existiam antes no meu Almanaque Abril. Eram novos mapas se desenhando no meu Atlas Melhoramentos. Eram países que o mundo estava inventando.

Ao mesmo tempo, a política estava literalmente nas ruas, no Brasil. No início do ano, a entrevista bombástica do Pedro Collor tinha desencadeado o Movimento pela Ética no Política, que acabou pressionando o Congresso a votar o impeachment de Fernando Collor. Os caras-pintadas faziam passeatas, inclusive gente do meu colégio, e se falava muito nas instituições democráticas, no funcionamento de uma república, na importância dos partidos e do parlamento. Sem contar o plebiscito pela monarquia ou república, que seria em 1992 e foi adiado para o ano seguinte, mas já entrava em discussão. A votação do afastamento (antes de se instaurar o processo) foi marcada para 29 de setembro de 1992.

No dia 25, eu estava sem nada para fazer à tarde, na casa da minha avó, e resolvi me dedicar a um passatempo solitário que era comum para mim: desenhar mapas de lugares inventados. A idéia era apenas desenhar mais uma cidade fictícia, como tantas que eu já tinha feito até então, mas com a particularidade de essa ser inspirada por uma conversa que tive com meu tio, dias antes, sobre o fato de toda grande cidade do mundo precisar de um rio e um porto de águas calmas. Por isso desenhei uma malha urbana em volta de uma enseada, exatamente como é o Rio de Janeiro. Ou seja, eu desenhei o mapa na casa da minha avó, completamente sozinho, na sexta-feira 25 de setembro de 1992. E construí toda a cidade, no papel, também sozinho, ao longo do fim-de-semana, inclusive decidindo que seria uma monarquia independente, pois desenhei o "Palácio Chifon", residência do Rei. Até então, não planejava incluir mais ninguém na brincadeira. Mas, quando levei o mapa para a escola, na segunda-feira seguinte, meus colegas gostaram tanto da idéia que quiseram escolher "casas" na cidade inventada: pontos no mapa, retângulos, em que eu escrevia seus nomes. Um deles, Daniel Mesquita, apontou justamente para o Palácio Chifon (era o maior retângulo), e por conta disso acabou se tornando o Rei. A partir disso, cada um de nós quis ocupar uma posição na "sociedade" do país, e a "simulação" de que estávamos num país independente foi fácil de entender e natural para todos, mas durou bem pouco. Na realidade, só eu levava a brincadeira extremamente a sério. Sério demais, como eu só entenderia dez anos mais tarde.

Enfim, todo o contexto da época ajudava, aliado à minha própria formação e estilo de vida, que destoava da maioria das outras crianças de 10 anos. Nessa conjuntura, tudo convergia para a criação de Porto Claro. Se você fosse uma criança extremamente politizada e estimulada intelectualmente, como eu era, naquele mês de setembro de 1992, você também teria inventado um país.


FPC: Por que a escolha do nome "Porto Claro" e sua localização geográfica?

PA: A localização geográfica de PC, já foi dito, foi escolhida DEPOIS de o país ter sido criado e já estar em simulação ativa. O nome já estava escolhido, e era obviamente PORTO porque comecei a desenhar o mapa exatamente na Zona Portuária (assim como o Rio de Janeiro começou na beira do porto, no século XVI) e a cidade era centrada em função do cais, da enseada. E CLARO, eu também creio ser óbvio, era porque um desenho feito a lápis num papel branco não poderia ter outro adjetivo. Ficou assim, o nome mais óbvio tornou-se o nome mais belo: Porto Claro, claro.

Partimos então para onde situar o país no mapa-múndi. Não haveria muita escolha. Primeiro que, se falávamos português "abrasileirado" e os nomes das ruas eram todos em português, a cidade-estado tinha necessiaramente que estar perto (ou "dentro") do Brasil. Para facilitar, por conta das dimensões territoriais minúsculas, bastava escolher um ponto no mapa e seria ali.
Ninguém opinou nesse aspecto; essa escolha também foi exclusivamente minha.


FPC: Duas perguntas que vários cidadãos já me fizeram e nunca soube responder. Por que o país é dividido em distritos, e não em estados ou províncias, por exemplo, e qual a origem dos nomes dos distritos portoclarenses?

PA: Porque "distrito" é como se chama a subdivisão administrativa de um município ---- até emancipar-se, um lugarejo ou povoado é oficialmente tratado como distrito, não como cidade. E, já que Porto Claro tinha as dimensões de um município, logicamente seus subúrbios e povoados das redondezas só poderiam ser distritos. Isso não foi planejado, foi instintivo. Porto Claro não poderia se dar ao luxo de ser subdividida em "províncias", se tinha menos de 1000km quadrados. Era impensável. Hoje isso ocorre porque são idiossincrasias das micronações ("se é simulado, pode tudo"), mas não havia esse tipo de raciocínio naquela época. Nosso modelo era o mundo macronacional, e devíamos obedecer a certas regras lógicas, desde a geografia física até as nomenclaturas internas.

Mas ressalto que, em 1992, o mapa só incluía a cidade que hoje chamamos de São Herculano e a vizinha Comidinha (que eu depois afrancesei para Comidinne), criada para ser a Niterói portoclarense (Niterói é uma cidade do outro lado da Baía da Guanabara, oposta ao Rio, que eu gosto de ridicularizar e desprezar, mas é um lugar bem agradável para se viver). Os demais só foram criados por mim, na época dos paples. Em 1993 eu criei Nova Paris, Nova Ruão e Nova Tolosa, expandindo o território de PC, que antes era só SH, para toda a Pointe Béhague. No ano seguinte, afrancesei os nomes para Nouvelle Rouen e Nouvelle Toulouse, e renomeei Nova Paris como Daniélia, em homenagem ao Daniel Mesquita. O território da Serra das Piranhas foi pseudoafrancesado para "Pirraines" (palavra que eu inventei) e só se tornou distrito em 1996, ao mesmo tempo em que o Marcelo Cavalcanti Bastos, da minha sala, fundou um distrito em cima de Nouvelle Toulouse e o batizou de Campos Bastos em sua própria homenagem (esse foi o único nome em toda Porto Claro que não foi inventado por mim). Isso tudo está comprovado nos mapinhas que guardo até hoje, mas que nunca pude scannear. Quem veio aqui em casa já viu.


FPC: Em 1996 Porto Claro chegou à internet. Como ocorreu esta decisão em transferir o país para a web e permitir que pessoas reais participassem do seu dia-a-dia?

PA: Não é correto dizer que eu decidi "transferir" o país para o "mundo virtual". Esse foi um dos maiores erros de interpretação dos cidadãos pós-1996, e que ainda persiste. Quando encontrei o site da Niquedônia, país inventado por um garoto canadense, e percebi que eu não era o único no mundo a ter tido idéia "tão original", eu imaginei que poderia usar o website para DIVULGAR Porto Claro, e estabelecer relações diplomáticas ---- algo que até então nunca tinha tido, já que PC era o único país do tipo que eu conhecia. Não planejava aceitar outras pessoas na minha brincadeira, mas quando tomei essa decisão, após observar brevemente como funcionava o sistema de "cidadania à distância" na Talossa, resolvi radicalizar. Lá na Talossa, o Robert Madison forçava todo mundo a comprar um livro escrito por ele mesmo, sobre a Talossa e o idioma, que ele enviava via Sedex, e submetia cada um a um rigoroso processo de imigração, no qual o candidato deveria provar que conhecia A FUNDO a história talossana, as particularidades do país, e finalmente passava por uma argüição, antes de conseguir a cidadania PROVISÓRIA, que só seria efetivada (ou não) meses mais tarde pelo parlamento. Eu, já com 14 anos, achei que isso seria muito burocrático e quis simplificar ao máximo. Acabei inventando o que se tornou o padrão de cidadania micronacional: um formulário de imigração para preencher, apenas para efeito de cadastro, e ingresso imediato. Não cobrei conhecimentos prévios, não cobrei atestado ideológico, não exigi nada além de dedicação e tempo livre. E nunca, em momento algum, me passou pela cabeça que as pessoas iriam se achar no direito de querer mudar a minha criação individual, os símbolos, o regime político, a própria História ---- o que hoje parece previsível, já que ignoravam toda a história pregressa, de 1992 até então. As conseqüências eu só veria anos mais tarde.


FPC: Durante 1996 e alguns meses de 1997 existiram ao mesmo tempo em Porto Claro cidadãos reais e fictícios, os famosos paples. De que forma a revelação de que vários dos cidadãos eram fictícios afetou as pessoas reais que já estavam em Porto Claro? Como ocorreu esta transição da Era dos Paples para a Era Moderna?

PA: Foi pouco tempo de "convivência" em comum. Os paples foram uma criação natural, ainda em 1993, para continuar com PC no mesmo estilo "obra ficcional", já que era exatamente assim até então. Ora, se eu tinha inventado tudo, mesmo, e se as outras pessoas tinham perdido o interesse com o fim das aulas em 1992, me parecia perfeitamente natural que eu ocupasse o lugar dos habitantes (subitamente evaporados?!!) com outros habitantes. Então inventei personagens, que eu desenhava em pedaços de papel, e para cada qual atribuía uma personalidade, uma individualidade, uma convicção ideológica e desejos, sonhos, emoções. Tudo isso muito antes de saber que encontraria outros países imaginários para interagir. Mas, quando encontrei, não podia simplesmente me desfazer dos habitantes (evaporar todos de novo??!!). Afinal, eles não eram pedaços de papel, eram A POPULAÇÃO de um país inteiro!! E, como ainda não tinha decidido abrir PC à entrada de novas pessoas de carne-e-osso, não poderia aparecer "o bloco do eu sozinho" no site oficial, já que o site era supostamente de um PAÍS e um "país de um homem só" parece título de conto do Gabriel García Márquez. Não era intenção de enganar ninguém. Creio que todos entenderam isso quando divulguei a carta "A Verdade" (um texto extremamente piegas e choroso) e recebi manifestações de apoio tanto de outros micronacionalistas quanto de cidadãos reais. Um deles, nessa época, já era o Fabiano Carnevale.

A transição foi um processo duplo: o ficcional/teórico (ou "virtualista") e o real/prático (ou "modelista"). O primeiro foi como explicar, para registro na História, que 300 habitantes de repente se evaporassem e o governo e seus ministros saíssem de cena para entrar um novo? A explicação foi relativamente simples: já que o primeiro-ministro paple de então era o Pierre Lamarcq Jackson, líder do PSDN, o seu substituto deveria ser do mesmo partido. E o único não-paple no PSDN era o norte-americano Harold D. Thomas, que em Porto Claro usava o nome Jean Tisserand. Como sempre em PC, foi o aspecto ficcional que determinou as medidas práticas (sou uma pessoa platônica: o mundo das idéias sempre precede e governa o mundo dos sentidos). Então, POR SER O ÚNICO membro de carne-e-osso no PSDN, o cidadão Jean Tisserand foi forçosamente empossado como primeiro-ministro. O que foi, afinal de contas, uma ótima decisão, pois o Harold era um sujeito sensato que se dispôs a entrar na simulação de PC sem mexer um milímetro na criação que, ele tinha plena consciência, era só minha. Quando ele assumiu o governo, disse "Pedro, você me tira na hora em que bem entender, se discordar ou se eu fizer algo errado; afinal, este é o *seu* país."

O uso do termo "paple" para designar "personagem forjado para fingir ser cidadão" só ganhou uso a partir de Cláudio de Castro, que inventou cidadãos em Reunião com a intenção deliberada de enganar os outros micronacionalistas e, após não precisar mais deles e admitir a forja, passou a usar a palavra paple como analogia aos meus bonequinhos de papel.


FPC: Algo que sempre chamou a atenção é que, apesar de você ser o criador de Porto Claro, o Poder Executivo ou Moderador portoclarense nunca estiveram em suas mãos, ao contrário de diversas micronações onde seus criadores se auto-nomearam reis ou governantes. Por que esta decisão de se afastar do poder portoclarense, ao menos no início de seu período na internet?

PA: Você está novamente enganado. Eu fui primeiro-ministro de Porto Claro por três vezes, sendo a primeira ainda lá em 1992. E primeiro-ministro é Poder Executivo. Nunca fui rei porque desde o início o Rei já era o Daniel e, uma vez criada a linha sucessória, eu não tinha como me meter. Mas poderia ter sido rei, sim, se quisesse, inclusive depois dos paples, em agosto de 1997, quando o Francesc Savalls me sugeriu isso pois achava que eu tinha muito mais direito do que o João Pedro Hilario. Só que eu nunca quis ser monarca, por opção própria. Sempre admirei as eminências pardas, os Richelieus e Golberys da vida, e acreditava que essa posição sempre era mais cômoda do que o fausto e o balangandã da coroa e do trono. E, de mais a mais, eu já era O DONO do País, então pra que ser rei? :-)))

Certamente essa frase soa muito estranha e arrogante às pessoas que estão na República de Porto Claro (esta é a primeira vez que escrevo sem aspas) e outras micronações hoje, mas esses países novos foram fundados sobre outros princípios. Porto Claro, como eu disse, não foi fundada para ser uma participação coletiva, ou uma criação em conjunto, democrática nem plural. Foi uma obra de ficção mesmo, individual, personalizada, de acordo com o que o autor criava e planejava. Talvez eu não tenha deixado isso suficientemente claro às pessoas que chegaram mais tarde, mas eu era um moleque de 14 anos e na minha cabeça isso era tão óbvio que não precisava explicar.


FPC: Mil novecentos e noventa e sete foi um ano de muitas transformações para Porto Claro: o 1º boom populacional, as eleições vencidas pelo PV, o acirramento da disputa monarquia x república e a 1ª Guerra Civil foram alguns grandes destaques. Até que ponto todas estas mudanças influenciaram na confecção da carta "Isto Não é Porto Claro", por você enviada em fevereiro de 1998?

PA: Até a medula. Nada disso era para ter acontecido, pois nada disso tinha absolutamente nada a ver com a realidade que eu havia criado para Porto Claro. Todos esses acontecimentos eram tão pertinentes a PC quanto um fliperama é pertinente a uma biblioteca. Demorei muito a perceber que minha concepção de PC não era a mesma dos demais cidadãos e que, se PC tinha saído da minha cabeça, a outra concepção teria que ser "errada". Ao mesmo tempo, queria deixar claro que não condenava as mudanças em si, e sim a aplicabilidade delas ao país que eu tinha criado.

O tom geral da carta que escrevi era este:

"Pessoal, não tenho absolutamente nada contra vocês quererem construir um país livre, lindo e democrático. Mas o país que EU inventei não é assim. Passei anos criando e imaginando cada detalhe, cada esquina de São Herculano, cada folha de árvore na Floresta de Pirraines. Portanto, o país que vocês estão fazendo é ótimo, é genial, só que não é o meu. É qualquer outra coisa, a que vocês deviam dar outro nome, menos Porto Claro. Porque o nome Porto Claro significa o país que eu inventei e que, gostem ou não, é do meu jeito."

Sinceramente, eu não esperava que me compreendessem. Já sabia que dali em diante ia haver duas PCs: uma que era a mesma desde que eu a criei em 1992, e outra construída de acordo com aquilo que os cidadãos acharam que PC fosse. Mas, também muito sinceramente, eu estava com a consciência limpa. Uma vez explicado para todos que PC não era uma obra coletiva e sim individual, não devia mais nada a ninguém. Infelizmente, o que se sucedeu foi uma briga homérica e demorada, muitas calúnias levantadas contra mim, e longos anos de inimizade, tudo fruto de um mal-entendido de proporções gigantescas.

Certamente um dos fatores que contribuíram para minha antipatia e para a apatia de iniciativas que tomaram conta de PC é o fato de que, no micronacionalismo, um dos aspectos mais fascinantes é o poder de criar, de inventar. Mas em Porto Claro eu já tinha inventado tudo, já tinha criado tudo, não havia um só detalhe em que eu não tivesse pensado. Isso desestimulou alguns, que saíram, e irritou outros, que se rebelaram. Não havia, porém, como ser diferente. Nunca estive disposto a compartilhar minha poiesis com outras pessoas, e pouquíssimos compreenderam isso. Quem sabe eu fizesse isso com outra criação minha, mas Porto Claro era meu xodó, minha filha, minha menina dos olhos. Talvez eu saiba hoje que eu não criei uma "micronação" (já que este conceito pressupõe participação de outras pessoas), mas PC foi, desde o início, uma obra de ficção, equivocadamente tomada como "aberta" ---- parte por culpa minha, parte por culpa de outrem.


FPC: Em fevereiro de 1998 ocorreu a cisão que fez com que duas "Porto Claros" co-existissem, o que ocorreu durante alguns anos. Por quais motivos essa cisão ocorreu e por que esta co-existência existiu durante tanto tempo?

PA: A resposta desta pergunta é continuação direta da anterior. Se eu acreditava que o "contrato" entre o criador de PC e os cidadãos estava muito claro (autor da obra e seus leitores, que lêem mas não interferem), ficava indignado de ver propostas de mudança para república, reformas, campeonato de futebol etc.. Certo, até hoje não sou uma pessoa fácil, mas era muitíssimo pior (e imaturo) naquela época, e os meus escândalos e arroubos de prepotência eram reações desesperadas de alguém que estava vendo seu trabalho criativo de vários anos sendo destruído. Pensa comigo: você criou um país, com determinadas características, deu nomes às cidades, às ruas, desenhou bandeiras e brasões, escreveu as leis, pesquisou e escreveu toda a História completa, e de repente pessoas estranhas argumentam que têm o DIREITO livre e soberano de mudar tudo?!

É claro que os cidadãos que tinham entrado do final de 1996 em diante não viam assim. Viam um menino autoritário que tentava se apoderar de uma construção "coletiva" da qual eles já se sentiam "co-autores". Acreditavam piamente que tinham direito a alterar tudo o que quisessem, desde que democraticamente votado, pois afinal a Porto Claro de seus sonhos era, em geral, o paraíso das liberdades. E quem esse tal de Aguiar (ora vejam, que ditadorzinho!) pensava que era para determinar tudo no país, no NOSSO país??!

Aos 15 anos, eu não tinha maturidade suficiente para enxergar o ponto-de-vista do outro lado. Se tivesse, talvez parasse e tentasse um diálogo maior, explicando calmamente e detalhadamente minha posição, do jeito que estou fazendo agora. Não sei se teria adiantado, mas pelo menos teria sido menos traumático. Muitas inimizades seriam poupadas.

A co-existência terminou quando, depois de exatos 10 anos (metade da minha vida) dedicados algo que, no final das contas, NÃO EXISTE, eu decidi cuidar da minha vida QUE EXISTE, que já estava ficando negligenciada.


FPC: O Estado de Porto Claro foi fechado ao completar 10 anos de existência, sendo que desde então você está afastado do micronacionalismo. Por que tomar tais decisões?

PA: Houve fatores genéricos, indiretos, e outros objetivos, diretos, que convergiram para essa decisão. Os genéricos são fáceis de ver. Se você olhar para a minha "biografia", que mal começou, metade dela foi gasta em Porto Claro. Caramba, eu ainda sou jovem (tô com 21 anos) e gastei boa parte do meu tempo livre nesses anos criando e detalhando cada vez mais o meu país fictício, minha obra de ficção, meu brinquedo abstrato. Eu obviamente não parei e, como tinha mais recursos e mais experiência, criei muito mais coisas para o País (como os mapas e as plantas urbanas detalhadas). A Porto Claro que eu desenvolvi no Estado é absurdamente mais evoluída, mais avançada e mais complexa do que aquela que eu podia construir até 1998.

Isso tudo as pessoas da República de Porto Claro não conhecem. Ou seja, desses 10 anos, foram cinco (set.1992-fev.1998) antes da cisão, mas outra metade inteirinha (fev.1998-set.2002) foi posterior. Porto Claro, como "obra fechada", é muito do que ocorreu nestes últimos cinco anos, a segunda metade, e isso consumiu muita energia criativa e me cansou muito.

Mas houve também fatores objetivos, principalmente um, que foi o assassinato da Lídia, minha "segunda mãe", ex-empregada doméstica na minha casa, que ajudou a minha mãe a me criar (e chegou a ser cidadã portoclarense em 1992). Ela evoluiu muito pessoalmente e, quando deixou de trabalhar aqui, foi fazer projetos comunitários em seu município ---- Magé, na Baixada Fluminense. Como ficou amplamente conhecida na comunidade, ela foi convidada (cooptada) para ser vice na chapa de Narriman Zito que, graças à honestidade e ao carisma da Lídia, foi eleita prefeita da cidade. Na noite de 1º de junho de 2002, ela foi morta e queimada quando estava indo denunciar casos de corrupção na prefeitura. Essa história, que não tem nada de fantasiosa nem de brincadeira, me puxou os pés pro chão com violência e me fez ver que política é um assunto sério demais para se brincar.


FPC: Sete anos após Porto Claro chegar a internet, o que se vê hoje é um cenário completamente diferente daquela época. Hoje existe de fato um micronacionalismo lusófono, com diversos países co-existindo, e provavelmente mais de 1500 pessoas já passaram por micronações brasileiras, em algum momento de sua história. Após todos estes anos, como é a sensação de ser o causador de tudo isso? Valeu a pena?

PA: Vou responder com um único exemplo. Nada me deixa tão satisfeito quanto ver os casais que se formaram por conta do micronacionalismo lusófono. Um deles, em especial, é a Adriana Moura e o Paulo Marcelo. No dia em que eles me disserem que nasceu o primeiro filho deles, e eu sentir uma pontinha de "mea culpa" nisso, não vou ter dúvida nenhuma de que tudo valeu a pena.


FPC: Na carta "Isto Não é Porto Claro" você diz que levar Porto Claro para a internet foi um grande erro seu. Ainda pensa deste modo? Por quê?

PA: Não sei. É a resposta mais sincera que posso dar. Não sei mesmo. Por um lado, colocar PC na internet foi o que causou o mal-entendido de que eu estaria "abrindo mão" da exclusividade criativa sobre ela, o que nunca foi verdade. Mas também foi o que permitiu que ela se desenvolvesse mais do que nunca, pois os duzentos ou trezentos cidadãos que passaram por Porto Claro entre novembro de 1996 (quando abri a imigração online) até fevereiro de 1998 (a Revolução) deixaram nela a sua contribuição, de alguma forma. Mesmo que o maremoto de Louise Crawford, a orquestra de Rômulo Montblanc, o museu de arte de Fabiano Carnevale, as guerrilhas de Savalls e Rafael Braga, a rede de lanchonetes fast-food do Leandro Smutchy e o império comercial do Clã Dansk nuncam tenham existido, todos eles me fizeram pensar e ter novas idéias para Porto Claro.

Devo ao fato de ter posto Porto Claro na internet pelo menos uma namorada, um número pequeno de grandes amigos com quem tenho contato até hoje e de quem gosto muito, um número incontável de amigos que são pessoas fabulosas mas que acabaram sumindo no mundo, mais de 15 matérias em jornais, revistas e sites do Brasil e outros países, muitas festas, muitas gargalhadas, MUITOS fios de cabelo branco, um mal-estar intermitente que eu desconfio que ainda vai virar uma úlcera, um certo prejuízo com gastos de todos os tipos, desde toneladas de papel até viagens, e o melhor amigo que eu já tive, Pedro Berger.

Se eu ainda penso que foi um erro? Desse jeito, fica difícil. :-)


FPC: Pedro, agradeço pela entrevista e, caso queira fazer algum comentário final, esteja à vontade.

PA: Ah, tenho sim, um comentário que sempre quis fazer, desde o primeiro número da Folha: eu DETESTO essa sua mania de pedir aos entrevistados um comentário final! :-D

Jornalista nenhum faz isso em jornal! Só em TV, quando a entrevista ganha forma de conversa. Quando é por escrito, a entrevista termina de repente e pronto, sem firulas nem despedidas. Você fica vendo muita televisão, Francisco... ;-)

Mas realmente tem algo que você não perguntou e de que eu gostaria de falar: as mudanças pessoais em mim e o que aprendi com isso tudo.

Entrei no que se pode chamar de "micronacionalismo" com 10 anos de idade. Saí com 20. Passei mais do que a minha adolescência inteira vivendo 50% num plano imaginário, e "convivendo" com pessoas. Nesse tempo inteiro, conheci todo tipo de gente. Bons amigos, maus caráteres, ingênuos bem-intencionados, espertos mal-intencionados, gênios, burros, pessoas que nunca vou esquecer e pessoas que até já esqueci. Houve momentos em que fiquei totalmente decepcionado com a falta de honestidade das pessoas, achando que o mundo era uma merda, que ninguém prestava. Outras vezes, fiquei admirado com o compromisso e as amizades que se fizeram mesmo a muitos quilômetros de distância. Aprendi, principalmente, a me equilibrar, a amadurecer, e a entender que, por mais que você seja uma pessoa super legal, os outros não vão te julgar pelo que você é, e sim pelo que você parece. E a aparência é resultado das ações. Como no micronacionalismo tudo é ação abstrata, são essas as que mais devemos valorizar e tomar muito cuidado para não gerar interpretações erradas. Ainda piso na bola, acontece, mas numa freqüência bem menor do que antes. Isso foi lição tirada dos anos micronacionais e ajudou na minha forma de encarar o mundo ---- e de ser encarado por ele. Em boa parte das vezes, o julgamento dos outros não importa coisa alguma. Mas em outras pode valer um amigo.

Já percebi que o texto tá ficando com cara de conselho piegas de livrinho de auto-ajuda, mas para terminar, queria contar um episódio que foi marcante. Durante anos eu sabia que não havia nem farol, nem palácio, nem serra lá em Pointe Béhague. Mas eu visualizava a cidade inteira como se existisse perfeitinha, e sentia um dever cívico/patriótico, um instinto, de checar e-mails, responder, escrever o *DP*, ou seja, "estar" em Porto Claro. Até que um belo dia, lá pelos idos de 2001, eu estava no ônibus, voltando para casa, pensando nos meus deveres de fato, e olhei para a cidade, a *minha* cidade ---- o Rio ---- e as pessoas lá fora, e me dei conta de algo que resumi numa frase, que até então parecia impronunciável: "Porto Claro não existe." E eu falei isso em voz alta, para mim mesmo, para eu escutar e entender, e nunca mais esquecer. Falei e sorri.

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